Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Podia ser em papel. Mas não era a mesma coisa.
No fim de semana que passou pude rever amigos com quem não estava já há quase três anos, desde que me casei. Um casal de ingleses e os filhos, que conheci ainda tão pequenos e dos quais cheguei inclusivé a ser babysitter, e que hoje já estão praticamente da minha altura: o Tim, a Joanne, o Daniel e o Benjamin. A história da nossa amizade é muito engraçada e quis o destino que se tornasse mais duradoura porque o momento em que se mudaram para portugal coincidiu também com o meu regresso temporário, durante as férias de verão, para terminar a tese de mestrado, que depois de terminada e entregue na faculdade ditou então o meu regresso definitivo.
Quando tomei a decisão de me inscrever no mestrado em Inglaterra e de me mudar para lá, sempre apoiada pelo meu pai, que me incentivou desde o primeiro segundo, prometi a mim própria que, por mais que a vida pudesse ser mais cara, não iria trabalhar em part-time. Isto porque a maioria dos trabalhos destinados ao "estrangeiro" eram normalmente em bares, restaurantes e afins, trabalhos que exigiam muitas horas e em regime de turnos, o que eu sabia que poderia afetar a minha dispobibilidade física e mental para estudar como deve ser. Além de tudo, eram mal pagos - bem pagos se compararmos com o que se ganha em Portugal a fazer o mesmíssimo trabalho, mas ainda assim nada que justificasse desleixar o meu rendimento e a dedicação ao mestrado, que era ao fim e ao cabo a verdadeira razão pela qual ali estava, e na qual o meu pai estava a investir monetariamente em meu proveito. Via amigos meus, até algumas das minhas colegas de casa, chegarem a casa às 3 e 4 da manhã depois de não sei quantas horas a trabalhar num bar ou num restaurante para ganharem umas míseras seis, sete libras à hora. O que acontecia era que no dia seguinte faltavam às aulas, pelo menos às da manhã, por se sentirem exaustos. Nunca quis isso para mim. Se fosse extremamente necessário esse dinheiro extra e o meu pai não tivesse condições de me ajudar, obviamente que o faria, mas já que não era, o meu total empenho era empregue na faculdade.
Certo dia um dos meus professores, sabendo que era portuguesa, chamou-me depois de uma aula para sondar o meu interesse em dar aulas de português para estrangeiros. Fiquei surpresa com a proposta. Disse-lhe que nunca na vida tinha dado aulas de coisa alguma, que tinha acabado de sair da faculdade e que até achava que não tinha jeitinho nenhum, muito menos vocação, para ser professora. Ainda assim, depois da minha honestidade brutal, explicou-me que um grande amigo, dono e diretor pedagógico do instituto de línguas a dez passos ali da faculdade (e da minha casa), o Language Specialists International, lhe tinha pedido ajuda para encontrar entre os seus alunos de mestrado alguém que ele achasse capaz de dar aulas de português e, de preferência, que fosse nativo, claro. Ele pensou em mim de imediato. Disse-me que o pedido tinha vindo da própria Royal Navy Britânica, que iria financiar estas sessões, e que o aluno era um dos seus oficiais, que dentro de poucos meses seria enviado para Portugal ao serviço da NATO, em Oeiras. Logo aí lembro-me que fiquei petrificada. Imaginei o estereótipo do típico oficial britânico fardado - formal, sisudo, velho, chato como o caraças. Eu, uma miúda de 23 anos, a ter de lidar com uma personagem dessas, ainda por cima num tête-à-tête, sem mais ninguém para aliviar o ambiente e mandar umas larachas. Deu-me o contacto do tal amigo e pediu-me que lhe ligasse para marcar uma reunião e saber mais pormenores; se estivesse interessada e disponível para o trabalho, ótimo, se não, não perdia nada.
Nesse dia liguei para o meu pai, em pânico, para lhe contar a novidade e pedir a opinião. Claro que ele disse logo que era uma excelente oportunidade e, desde que não prejudicasse os meus horários de aulas e estudo, devia aceitar. (Tudo isto ainda sem saber sequer quanto pagavam.) Acabei por marcar a reunião com o dono do instituto, muito simpático, que me disse que o tal oficial precisava apenas de saber o básico da língua portuguesa, algo que lhe permitisse fazer compras, andar na rua, pedir o jantar no restaurante, enfim, o que um turista precisa (ou deveria) saber quando vai de férias para um país estrangeiro. Tinham à minha disposição todo o material necessário, e para ele também, e eu poderia servir-me das instalações e recursos da escola para pedir o que fosse preciso. As aulas seriam de 3 horas, duas a três vezes por semana ao final da tarde, sempre depois de terminado o meu dia na faculdade, e o salário era de 16 libras por hora. Disse-lhe logo que sim sem pestanejar. Essa pequena fortuna, numa altura em que a Libra estava altíssima relativamente ao Euro, traduzia-se em mais compras, mais saídas com os amigos, mais idas ao cinema, tudo gastos supérfluos que tentava controlar ao máximo por não querer estourar a generosa mesada que recebia do meu pai. Ainda por cima, sendo estudante, sobre este valor não ia incidir qualquer desconto. Deram-me não sei quantos documentos e requisições para preencher, registei-me na Inland Revenue, a Segurança Social Britânica, e assim que tudo ficou em ordem e recebi o meu número de contribuinte vitalício ("Se um dia quiser voltar a trabalhar cá, nem que seja daqui a 50 anos, o seu número e o seu cartão ainda serão os mesmos", disseram-me), pudemos agendar a primeira aula. Preparei tudo com entusiasmo, ainda que estivesse nervosa por não saber que tipo de aluno me esperava: fiz o plano das aulas para os primeiros dois meses, imprimi folhas, inventei exercícios, estudei os livros. Acabei por achar que isto, afinal, era capaz de ser divertido e que se calhar até ia gostar. Três horas pareciam-me uma eternidade para encher, e por isso para a primeira fiz questão de levar material a triplicar.
Nesse dia acho que caminhei até ao instituto com uma certa má disposição, tal era a ansiedade e o nervosismo. Estive quase a voltar para trás e a ligar para lhes dizer que tinha uma unha do pé encravada e que afinal não podia ir. Mas fui. E o tal oficial que me fez ter pesadelos acabou por ser uma supresa. Pouco mais velho do que eu (11 anos a mais, descobri depois), uma cara simpática, muito descontraído e informal, apesar da tal farda branca da Marinha que lhe daria supostamente aquele aspeto mais austero, o Tim foi sempre um aluno interessado e sorridente, que fazia muitas perguntas sobre a cultura do nosso país, pedia-me fotos, factos interessantes, e contava imensas piadas a toda a hora. A meio da aula faziamos sempre um intervalo de 10 minutos para tomar chá (Earl Grey, sempre) e comer uns cookies, na sala de convívio dos professores, que a essa hora estava vazia, e conversávamos imenso. Acabou por se tornar mais do que um aluno, um grande amigo, quando chegou a altura de se mudar para Portugal e me disse que, caso eu estivesse disponível, fazia questão que as aulas de português que a mulher iria ter, já depois de instalados, também financiadas pela Royal Navy, fossem dadas por mim. Mais: desta vez, o valor pago por hora seria a quadriplicar. Fiquei muito feliz e agradecida e aceitei, claro. Depois de terminada a minha tese e já de volta a casa, começámos as aulas e acabei por conhecer a esposa, Joanne, da qual fiquei também muito amiga. Tornei-me frequentadora assídua da casa deles e chegaram a pedir-me que tomasse conta dos filhos naquelas ocasiões em que queriam sair para jantar e beber uns copos, porque, diziam, "não confiamos em mais ninguém". Nunca quis que me pagassem essas noites, em que basicamente os meninos estavam a dormir no quarto, e eu acabava a fazer o mesmo no sofá da sala depois de ver um ou dois DVDs, mas nunca me deixaram recusar e diziam mesmo que se iam sentir ofendidos se não aceitasse. "Pelo menos para a gasolina e portagem", era o argumento. Sim, portagem e gasolina até ao Algarve.
E assim se foram passando os anos, entre festas, almoços e jantares, até que chegou a hora da família regressar a Inglaterra. Agora só nos vemos de vez em quando, sempre que eles voltam de férias, e na promessa de irmos visitá-los a Surrey. São amigos queridos e nunca nos esquecemos deles. No sábado voltámos a reforçar a ideia - sim, vamos ver-vos! Até porque as minhas saudades de Carnaby Street já não cabem no coração. Se for antes de nascer a bebé, tanto melhor, caso contrário, vamos na mesma! O meu sobrinho mais novo foi a visitar-me a Inglaterra com apenas 4 mesitos, a minha irmã e o meu cunhado correram Londres inteira com ele em pleno fevereiro - museus, restaurantes, monumentos, lojas, parques - não se transformou em Calipo e ninguém morreu. Aqui está a prova de que é possível.