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Por Carmen Saraiva

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Cesariana: o bicho-papão

Quinta-feira, 16.01.14

Depois do parto, foi tudo muito rápido. Ainda demorou um pouco a cair-me a ficha de que já tinha passado aquele momento que eu tanto tinha receado, que era mamã e já tinha a minha menina ali comigo, pronta a receber todo o amor e carinho que tinha guardado para ela durante quase nove meses. Assim que passei da sala do recobro para o quarto (não sem antes o enfermeiro ter agarrado na minha barriga e pressionado com força para ver se estava tudo dentro da normalidade, o que me fez guinchar que nem uma doida e dizer-lhe que aquilo tinha custado mais do que o parto), ainda meio grogue da anestesia, que já começava a dar efeitos de passar, percebi que não ia ser fácil aquele início. Não me conseguia mexer da cintura para baixo. Pelo menos, não sem dificuldade. Queria voltar-me de lado na cama para lhe dar de mamar, e essa parte foi fácil enquanto a anestesia fazia efeito. O pior foi depois. Voltar de lado, sim. Voltar à posição inicial, para esquecer. Ah, e voltar, só para o lado direito da cama. Para o esquerdo não dava. A minha irmã M. já lá estava com o recém-papá e entraram logo no quarto assim que cheguei, pouco depois chegaram o meu pai, a minha outra mana e os meus dois sobrinhos mais velhos. Ela estava tranquila, deitada ao meu lado, mas ainda não tinha mamado praticamente nada. Precisei da ajuda de um daqueles mamilos de silicone, porque ela simplesmente não conseguia agarrar o meu. A minha sobrinha e a minha irmã trouxeram presentes, falavam para mim mas eu sentia-me lenta. Ouvia-as falar, mas não interiorizava nada. Entretanto entrou uma enfermeira para tratar da Margarida, ver se estava tudo bem e mudar-lhe a fralda. Não fui eu quem mudou a primeira, mas sim a enfermeira em conjunto com o marido, que teve ali a primeira experiência com bebés da sua vida. Queria levantar-me e pegar nela, mas só consegui fazê-lo no final do segundo dia. (Antes disso só consegui tê-la nos meus braços deitada na cama, cabeceira ligeiramente elevada, com ela atravessada sobre o meu peito. Era impossível suportar qualquer peso sobre a barriga.)

A partir daí iam entrando de vez em quando para me dar analgésicos através do cateter que tinha na mão esquerda, e as dores não eram assim tantas se não me tentasse mexer ou virar. Por volta das nove e qualquer coisa da noite, veio uma enfermeira muito simpática, juntamente com uma auxiliar, para fazer o levante - o nome que se dá ao momento horrendo em que temos de nos levantar da cama pela primeira vez após um parto. Estava cheia de medo, mas ao mesmo tempo queria imenso levantar-me e tomar um duche "à gato", como diziam as enfermeiras - o primeiro duche não pode passar disso mesmo. Lentamente, foram elevando a cabeceira da minha cama até estar quase na posição sentada. Aí é que foram elas. A enfermeira ia-me perguntando se estava tudo bem, e eu dizia que sim. Mas não estava, e eu não queria dar parte fraca. Pegaram-me nas pernas e ajudaram-me a posicionar-me à beira da cama, pronta para pôr os pés no chão. Foi aí que a minha cara de dor denunciou a mentira: estava no limite do desespero. Na zona da costura era como se me tivessem encostado um ferro em brasa. Fiquei imóvel, à beira da cama, com a enfermeira de um lado, a auxiliar do outro, e o marido sentado no sofá com ar de pânico, sem poder fazer nada para ajudar. "Carmen, não tem de fazer isto se não conseguir, podemos esperar mais um bocadinho", disse a enfermeira. "Não, eu quero levantar-me", gemi. "Só pensei que não fosse tão mau." "Oh, pois, não é só consigo... Olhe, há pessoas que desmaiam nos levantes!", respondeu. Pois. Não era bem isso que eu queria ouvir, mas pronto. Valeu pela intenção. Com muito esforço, lá consegui levantar-me e andar mal emporcamente, em posição corcunda, até à casa de banho. O cenário atrás de mim não era dos mais bonitos. Valeu a presença da auxiliar, que resolveu logo o problema. Tive de ser ajudada pela enfermeira a fazer tudo, e depois do duche (só da cintura para baixo e costas), camisa de dormir vestida e de volta à cama, já me sentia um pouco melhor, apesar de não ter podido aplicar todos os cremes de rosto e corpo e afins que tinha levado na mala (ahah, tão iludida que estava!). Nessa noite percebi que tinha havido algum progresso na recuperação, apesar de me custar imenso a levantar da cama - só consegui fazê-lo de madrugada, e isto porque me sentia mesmo aflita para ir à casa de banho. Os analgésicos seguiam-se, uns atrás dos outros, e iam mascarando as dores. O marido tinha de se levantar da cama para mudar a fralda da Margarida e para ma colocar sobre o peito, e ela poder mamar. Eu só conseguia acordar com o alarme do telefone, desligá-lo e tornar a acertar com nova hora. Tinha de o acordar para tudo. É uma sensação de impotência tremenda. Caso ele não tivesse lá ficado, tinha de estar a chamar as enfermeiras de hora a hora, de certeza...

O dia seguinte, quinta-feira, foi tranquilo. De manhã consegui levantar-me novamente e ajudei a enfermeira a dar o primeiro banho da Margarida, troquei a roupinha dela e vesti-a. Mas ainda não me sentia capaz de lhe pegar ao colo. E sim, as dores continuavam; apesar de conseguir andar, sentar-me estava fora de questão. Cheguei a dar-lhe de mamar em pé, durante praticamente uma hora, porque não me queria deitar e também não conseguia usar o cadeirão que estava no quarto. O resultado eram dores imensas nos pés e nas pernas e um cansaço enorme, que me obrigavam a voltar para a cama. Nesse dia só recebemos duas visitas, a da minha mana M. e da minha amiga M. e do pequeno B., e por isso não houve grande rebuliço. Aquilo custava, mas nada de especial. Ninguém me disse, mas há uma lista de coisas que não conseguimos fazer após uma cesariana. São elas:

- Sentar

- Rir

- Espirrar

- Assoar o nariz

- Tossir ou vomitar (numa das refeições engasguei-me com um pouco de água, e só vos digo que a perspectiva de morrer sufocada me parecia mais agradável do que as dores agudas que sentia se tentasse tossir)

- Ir à casa de banho (pelo menos nos primeiros dias)

- Tomar banho sozinha

- Calçar meias e vestir collants

- Apanhar coisas do chão

- Levantar pesos

- Conduzir

- Outras cenas que de momento não me ocorrem

 

O pior, pior, foi mesmo a sexta-feira. Recebemos mais visitas, houve mais confusão, e não sei se só por isso mas também, ao final do dia comecei a sentir um retrocesso na recuperação. O marido foi ao carro buscar ou levar qualquer coisa, e nesse bocadinho em que fiquei sozinha fartei-me de chorar. Não faço ideia porquê. Solucei a olhar para ela, enquanto dormia, num misto de felicidade e pânico. Chorava porque ela era linda, chorava por estar agradecida por ter corrido tudo bem, chorava por ter finalmente chegado o culminar daqueles nove meses de emoções, chorava por não saber se ia estar à altura deste desafio... Enfim, chorava. Sobretudo por não saber se ao chegar a casa ia estar apta a tratar dela como queria. Apesar de saber que o marido ia estar ao meu lado nos primeiros dias, queria ser EU a tratar dela, a mudar-lhe a fralda, a dar-lhe o banho. E nem sabia se ia conseguir dar banho a mim própria, nem sabia se iria conseguir entrar para a banheira... Essa noite foi mesmo a pior. Ela teve cólicas, e muito provavelmente estava com o stress de ter recebido tanta visita, e chorou imenso tempo. Ok, chorou desde as 22h até às 2h da manhã, mas como no hospital uma pessoa se deita com as galinhas, a mim pareceu que tinha chorado a noite inteira. E as minhas dores também pioraram. Não me conseguia levantar da cama sem que me viessem as lágrimas aos olhos, e cheguei a chorar de desespero. Não havia analgésico que me valesse. Só me lembrava do Joaquim Monchique, na peça "Lar, doce lar": "São cães, são cães a morderem-me!" Como é que raio iria ter alta no dia seguinte? Nem me conseguia sentar, por isso como é que ia entrar no carro? Amaldiçoei as pessoas que me tinham dito que a recuperação de uma cesariana chega a ser mais fácil do que a de um parto normal. Cambada de mentirosas, raios! Entretanto também devo ter tido nessa noite a subida (ou descida, nunca sei) do leite. Não foi muito crítica porque, por conselho das manas, não bebi praticamente água nenhuma nos dias anteriores, apesar de me apetecer beber este mundo e o outro. Uma enfermeira muito querida (penso que se chamava Mónica, mas não tenho a certeza) veio ter connosco de madrugada, quando nos viu desesperados (eu com dores e com o choro dela, o marido com o choro de ambas, coitado), e mal me colocou as mãos no peito, guinchei de dor e lá voltaram as lágrimas. A enfermeira, sem estar à espera, ficou aflita e tentou acalmar-me. Foi só quando ela me ensinou a massajar devidamente o peito, enquanto a Margarida mamava, que o desconforto foi passando. Verificou e confirmou que o leite estava a passar devidamente, por isso não deveria ter mais problemas, era só aguentar aquele bocadinho. Perguntei-lhe se não a podia trazer para casa comigo, para fazer o mesmo nos dias seguintes. Ela riu-se. (Não, a sério, venha lá.)

Quando o dia amanheceu, à luz e à claridade, tudo pareceu mais fácil. Apesar disso, dormi mal (e pouco) e por isso quando vi a minha cara no espelho, ia morrendo de susto. Olheiras até ao chão. Olhos vermelhos. Pele baça. Cabelo desgrenhado. Jesus, será isto a maternidade? Mas o que é certo é que me sentia mil vezes melhor. Já não me custava tanto a levantar da cama, tomei banho sozinha (até consegui pôr os meus cremes!) e já fui capaz de me sentar na beirinha da cama sem ter dores por aí além. Não queria acreditar na diferença que fazia de um dia para o outro, em poucas horas. Afinal a alta de uma cesariana ao terceiro dia tem mesmo razão de ser: em princípio será quando a grande maioria das mulheres já se sente praticamente recuperada. Agora já começava a acreditar nas teorias que desmistificavam a lenda da "cesariana bicho-papão". Eu tive alta ainda de manhã e começámos a arrumar as tralhas para nos irmos embora. Se quando fomos parecia que levávamos bagagem para três semanas de viagem, agora então, com tudo desarrumado e com os presentes que nos tinham oferecido, ainda pior. Infelizmente, a Margarida ainda teve de fazer cinco horas de fototerapia, por estar um pouco amarelinha, e por isso saímos do hospital já passava das seis da tarde - era noite cerrada. Mas fora os abanões que se sentem dentro do carro e o desconforto que provocam (só arranjei a milagrosa cinta pós-parto três dias depois de sair da maternidade), vim sempre bem e logo que cheguei a casa já me sentia capaz de fazer tudo. Claro que não fiz, por precaução, mas percebi que estava no bom caminho. Precisamente uma semana depois, o Dr. Amado tirou-me os pontos (em pouco mais de um minuto) e não custou nada. Só me disse que durante cerca de seis meses poderia eventualmente sentir a zona da costura um pouco dormente, e realmente confere. É estranho, mas por enquanto ainda não tenho muita sensibilidade nessa zona, apesar de sentir que começa a voltar, lentamente.

Hoje, praticamente um mês depois da cesariana, posso dizer que a recuperação não foi nada de especial, fora aquele dia em particular, em que pensei que acabava o mundo. É realmente mais fácil, menos violento e acredito que em certos aspetos melhor do que um parto normal, em que os cortes e os pontos podem ser mais e mais dolorosos do que estes. Não sei, porque nunca tive um parto normal, mas acredito em quem já passou por ambos e me tinha dito isto antes de ter passado eu mesma pela experiência. Fico feliz por ter confiado plenamente no meu médico e agora percebo por que me recomendou esta opção. Sou um caso de sucesso que não contribui para as estatísticas que recomendam o parto normal, mas certamente não serei a única. Só sei que sobrevivi para contar a história, com final feliz!

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por Carmen Saraiva


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