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Podia ser em papel. Mas não era a mesma coisa.
Há um ano, estava eu carregadinha de nervos. Há um ano, sentia-me num carrossel de emoções, sacudida entre o entusiasmo, a ansiedade, o medo, a alegria. Há um ano, estava eu numa cama da maternidade, a aguardar que me levassem para cesariana, a pedir ao enfermeiro Sérgio para me ajudar a levantar de cinco em cinco minutos, para eu poder ir à casa de banho (38 semanas de gravidez e stress são uma mistura explosiva). Há um ano, estava prestes a conhecer a Margarida. Depois de nove meses a imaginar o seu rosto, a sentir na barriga os seus pontapés e as suas reações aos barulhos exteriores estridentes, que ainda hoje a incomodam, estava finalmente na hora de poder pegar-lhe, cheirá-la e abraçá-la. Contar e examinar com atenção todos os dedinhos das mãos, depois os dos pés. Foi um dia marcante do qual relembro exactamente cada momento - até ter sido mãe não percebia como era possível decorar com tanta clareza cada segundo de um dia, mesmo que já tivessem passado 30 ou 40 anos, ou uma vida inteira. Agora percebo. A frase que mais impacto teve em mim foi aquela proferida pelo querido Dr. Amado, "Vem aí a sua Margarida!", milésimos de segundo antes de a puxar para o Mundo e para o seio das nossas vidas, que são agora tão mais cheias de sentido. Só porque ela existe. Só porque vale a pena acordar todos os dias para um sorriso, para uma gargalhada, para um abraço apertado e um beijo doce da nossa boneca de Natal. O primeiro momento em que a vi, erguida pelo Dr. Amado sobre o pano verde, ficou congelado para sempre na minha memória. Achei-a logo tão mimosa e absolutamente única. Nunca pedi para ter uma filha perfeita, por achar que não existiam. Mas a Margarida é realmente a nossa filha perfeita. Em mil bebés, não poderia haver outra igual. Nem por encomenda conseguiriam reproduzir outra menina tão linda, tão sorridente, tão calma, tão divertida, tão meiga. E ainda só passou um ano. Sei que temos muita sorte e só tenho a agradecer estes 12 meses em que na nossa casa a felicidade foi elevada ao expoente máximo. Parabéns, minha filha. Meu tesouro. Desejo-te muitos anos de saúde e felicidade, e que nós estejamos cá para os ver. A mamã ama-te muito, muito.
Durante toda a gravidez me disseram para aproveitar cada momento, porque ia passar depressa e depois iria sentir saudades da barriga. A verdade é que desde o dia em que vi o tal risquinho no teste de gravidez que anunciava a vinda da minha boneca até ao dia em que a pude segurar nos braços foi um fósforo. Nem consigo acreditar que já passei por aquilo que mais temia, o parto e a recuperação, e que superei com sucesso a etapa da amamentação e os primeiros dias de adaptação à bebé. Tem corrido tudo lindamente, e fora algumas birritas de sono ou de fome que faz às vezes durante o dia, porta-se muito bem e se não a acordar para comer à noite, nem dá ares de si.
Ainda nem estava grávida, nem tal me passava pela cabeça, e já a amamentação era algo que me metia medo. Apesar de ter ouvido verdadeiros filmes de terror sobre o que era amamentar e das coisas horríveis que poderiam acontecer, desde mamilos macerados a mastites, a subida do leite foi algo que me atormentou durante meses e que afinal não passou de uma ligeira tensão na mama que me custou, mas apenas durante uma noite, estava ainda na maternidade. Felizmente com a ajuda de uma das enfermeiras consegui superar essa fase e no dia seguinte já nem sentia nada, ao ponto de achar que aquilo nunca poderia ser a subida do leite, e que o pior ainda estava para vir. Mas não! As febres, as dores intensas, o calor, etc., não passaram por mim... Mais uma situação da maternidade em que fui uma grande felizarda. O único problema (que não é problema) é que ainda no recobro me aconselharam a usar os famosos mamilos de silicone para a ajudar a pegar na mama, e agora não consigo largá-los: primeiro porque ela tem mais dificuldade em reconhecer a mama sem o auxílio deles e começa a chorar porque não consegue mamar tão facilmente, e depois porque das vezes em que insisti e que ela realmente mamou durante alguns minutos, fiquei absolutamente dorida e depois quase nem conseguia sentir a roupa sobre o peito... Resultado: desisti e voltei à estaca zero e fui buscá-los de novo. Mas melhor assim do que não dar de mamar de todo. Enquanto estava grávida e depois de me informar sobre o assunto, decidi que fazia muita questão de amamentar e tinha pavor de que algo corresse mal e me fizesse desistir. Queria dar de mamar, mas não era à custa de lágrimas, sangue e dores agudas... Felizmente tudo não passou de um ligeiro desconforto, e posso dizer que está a correr muito bem e que adoro dar de mamar. É de facto um momento mágico que só nos pertence às duas, e é engraçado ver como ela reage quando percebe que está na hora da maminha. Faz uma expressão de contentamento que dá gosto de ver! E quando olha para mim, muito atentamente de olho muito aberto, enquanto mama, parece que quer conversar. Só me custa mais de noite, porque me sinto uma zombie quando o despertador toca, mas de todo o modo ela já faz seis horas sem comer, o que já me permite descansar muito mais do que ao início, e em breve poderá fazer mais ainda. Ah, e também é uma grande pastela para comer - demora muito tempo, não sei se é o mimo a falar mais alto, ou se é mesmo ela que é lenta à hora da refeição.
Neste momento, ela está a leite materno + suplemento ocasional (só quando parece ter fome e sempre depois de mamar primeiro, já que eu não tenho leite para dar e vender, como muitas mães têm). No início custou-me imenso ceder porque queria que ficasse a leite materno exclusivo o máximo de tempo possível, mas teve mesmo de ser porque os aumentos de peso que tinha nas primeiras semanas eram insignificantes. Ela chorava com fome e como os intervalos eram muito curtinhos, para tentar que ela ganhasse mais peso mais depressa, a mama não tinha sequer tempo de encher. Assim percebi que, apesar de ela demorar séculos a mamar, eu praticamente não tinha leite. E pronto, a pediatra aconselhou e tive mesmo de passar a incluir o leite artificial de vez em quando, em jeito de sobremesa. E foi assim que desatou a ganhar peso e estabilizou como devia. Neste momento está ótima, adora comer e não foi por ter bebido o LA que deixou de adorar mamar (o que era, no fundo, o meu maior medo - que ela depois rejeitasse a mama).
Afinal, isto não é tão difícil quanto me venderam. Dois meses passados (praticamente), acho que tive mesmo muita sorte. Espero que continue assim.
Depois do parto, foi tudo muito rápido. Ainda demorou um pouco a cair-me a ficha de que já tinha passado aquele momento que eu tanto tinha receado, que era mamã e já tinha a minha menina ali comigo, pronta a receber todo o amor e carinho que tinha guardado para ela durante quase nove meses. Assim que passei da sala do recobro para o quarto (não sem antes o enfermeiro ter agarrado na minha barriga e pressionado com força para ver se estava tudo dentro da normalidade, o que me fez guinchar que nem uma doida e dizer-lhe que aquilo tinha custado mais do que o parto), ainda meio grogue da anestesia, que já começava a dar efeitos de passar, percebi que não ia ser fácil aquele início. Não me conseguia mexer da cintura para baixo. Pelo menos, não sem dificuldade. Queria voltar-me de lado na cama para lhe dar de mamar, e essa parte foi fácil enquanto a anestesia fazia efeito. O pior foi depois. Voltar de lado, sim. Voltar à posição inicial, para esquecer. Ah, e voltar, só para o lado direito da cama. Para o esquerdo não dava. A minha irmã M. já lá estava com o recém-papá e entraram logo no quarto assim que cheguei, pouco depois chegaram o meu pai, a minha outra mana e os meus dois sobrinhos mais velhos. Ela estava tranquila, deitada ao meu lado, mas ainda não tinha mamado praticamente nada. Precisei da ajuda de um daqueles mamilos de silicone, porque ela simplesmente não conseguia agarrar o meu. A minha sobrinha e a minha irmã trouxeram presentes, falavam para mim mas eu sentia-me lenta. Ouvia-as falar, mas não interiorizava nada. Entretanto entrou uma enfermeira para tratar da Margarida, ver se estava tudo bem e mudar-lhe a fralda. Não fui eu quem mudou a primeira, mas sim a enfermeira em conjunto com o marido, que teve ali a primeira experiência com bebés da sua vida. Queria levantar-me e pegar nela, mas só consegui fazê-lo no final do segundo dia. (Antes disso só consegui tê-la nos meus braços deitada na cama, cabeceira ligeiramente elevada, com ela atravessada sobre o meu peito. Era impossível suportar qualquer peso sobre a barriga.)
A partir daí iam entrando de vez em quando para me dar analgésicos através do cateter que tinha na mão esquerda, e as dores não eram assim tantas se não me tentasse mexer ou virar. Por volta das nove e qualquer coisa da noite, veio uma enfermeira muito simpática, juntamente com uma auxiliar, para fazer o levante - o nome que se dá ao momento horrendo em que temos de nos levantar da cama pela primeira vez após um parto. Estava cheia de medo, mas ao mesmo tempo queria imenso levantar-me e tomar um duche "à gato", como diziam as enfermeiras - o primeiro duche não pode passar disso mesmo. Lentamente, foram elevando a cabeceira da minha cama até estar quase na posição sentada. Aí é que foram elas. A enfermeira ia-me perguntando se estava tudo bem, e eu dizia que sim. Mas não estava, e eu não queria dar parte fraca. Pegaram-me nas pernas e ajudaram-me a posicionar-me à beira da cama, pronta para pôr os pés no chão. Foi aí que a minha cara de dor denunciou a mentira: estava no limite do desespero. Na zona da costura era como se me tivessem encostado um ferro em brasa. Fiquei imóvel, à beira da cama, com a enfermeira de um lado, a auxiliar do outro, e o marido sentado no sofá com ar de pânico, sem poder fazer nada para ajudar. "Carmen, não tem de fazer isto se não conseguir, podemos esperar mais um bocadinho", disse a enfermeira. "Não, eu quero levantar-me", gemi. "Só pensei que não fosse tão mau." "Oh, pois, não é só consigo... Olhe, há pessoas que desmaiam nos levantes!", respondeu. Pois. Não era bem isso que eu queria ouvir, mas pronto. Valeu pela intenção. Com muito esforço, lá consegui levantar-me e andar mal emporcamente, em posição corcunda, até à casa de banho. O cenário atrás de mim não era dos mais bonitos. Valeu a presença da auxiliar, que resolveu logo o problema. Tive de ser ajudada pela enfermeira a fazer tudo, e depois do duche (só da cintura para baixo e costas), camisa de dormir vestida e de volta à cama, já me sentia um pouco melhor, apesar de não ter podido aplicar todos os cremes de rosto e corpo e afins que tinha levado na mala (ahah, tão iludida que estava!). Nessa noite percebi que tinha havido algum progresso na recuperação, apesar de me custar imenso a levantar da cama - só consegui fazê-lo de madrugada, e isto porque me sentia mesmo aflita para ir à casa de banho. Os analgésicos seguiam-se, uns atrás dos outros, e iam mascarando as dores. O marido tinha de se levantar da cama para mudar a fralda da Margarida e para ma colocar sobre o peito, e ela poder mamar. Eu só conseguia acordar com o alarme do telefone, desligá-lo e tornar a acertar com nova hora. Tinha de o acordar para tudo. É uma sensação de impotência tremenda. Caso ele não tivesse lá ficado, tinha de estar a chamar as enfermeiras de hora a hora, de certeza...
O dia seguinte, quinta-feira, foi tranquilo. De manhã consegui levantar-me novamente e ajudei a enfermeira a dar o primeiro banho da Margarida, troquei a roupinha dela e vesti-a. Mas ainda não me sentia capaz de lhe pegar ao colo. E sim, as dores continuavam; apesar de conseguir andar, sentar-me estava fora de questão. Cheguei a dar-lhe de mamar em pé, durante praticamente uma hora, porque não me queria deitar e também não conseguia usar o cadeirão que estava no quarto. O resultado eram dores imensas nos pés e nas pernas e um cansaço enorme, que me obrigavam a voltar para a cama. Nesse dia só recebemos duas visitas, a da minha mana M. e da minha amiga M. e do pequeno B., e por isso não houve grande rebuliço. Aquilo custava, mas nada de especial. Ninguém me disse, mas há uma lista de coisas que não conseguimos fazer após uma cesariana. São elas:
- Sentar
- Rir
- Espirrar
- Assoar o nariz
- Tossir ou vomitar (numa das refeições engasguei-me com um pouco de água, e só vos digo que a perspectiva de morrer sufocada me parecia mais agradável do que as dores agudas que sentia se tentasse tossir)
- Ir à casa de banho (pelo menos nos primeiros dias)
- Tomar banho sozinha
- Calçar meias e vestir collants
- Apanhar coisas do chão
- Levantar pesos
- Conduzir
- Outras cenas que de momento não me ocorrem
O pior, pior, foi mesmo a sexta-feira. Recebemos mais visitas, houve mais confusão, e não sei se só por isso mas também, ao final do dia comecei a sentir um retrocesso na recuperação. O marido foi ao carro buscar ou levar qualquer coisa, e nesse bocadinho em que fiquei sozinha fartei-me de chorar. Não faço ideia porquê. Solucei a olhar para ela, enquanto dormia, num misto de felicidade e pânico. Chorava porque ela era linda, chorava por estar agradecida por ter corrido tudo bem, chorava por ter finalmente chegado o culminar daqueles nove meses de emoções, chorava por não saber se ia estar à altura deste desafio... Enfim, chorava. Sobretudo por não saber se ao chegar a casa ia estar apta a tratar dela como queria. Apesar de saber que o marido ia estar ao meu lado nos primeiros dias, queria ser EU a tratar dela, a mudar-lhe a fralda, a dar-lhe o banho. E nem sabia se ia conseguir dar banho a mim própria, nem sabia se iria conseguir entrar para a banheira... Essa noite foi mesmo a pior. Ela teve cólicas, e muito provavelmente estava com o stress de ter recebido tanta visita, e chorou imenso tempo. Ok, chorou desde as 22h até às 2h da manhã, mas como no hospital uma pessoa se deita com as galinhas, a mim pareceu que tinha chorado a noite inteira. E as minhas dores também pioraram. Não me conseguia levantar da cama sem que me viessem as lágrimas aos olhos, e cheguei a chorar de desespero. Não havia analgésico que me valesse. Só me lembrava do Joaquim Monchique, na peça "Lar, doce lar": "São cães, são cães a morderem-me!" Como é que raio iria ter alta no dia seguinte? Nem me conseguia sentar, por isso como é que ia entrar no carro? Amaldiçoei as pessoas que me tinham dito que a recuperação de uma cesariana chega a ser mais fácil do que a de um parto normal. Cambada de mentirosas, raios! Entretanto também devo ter tido nessa noite a subida (ou descida, nunca sei) do leite. Não foi muito crítica porque, por conselho das manas, não bebi praticamente água nenhuma nos dias anteriores, apesar de me apetecer beber este mundo e o outro. Uma enfermeira muito querida (penso que se chamava Mónica, mas não tenho a certeza) veio ter connosco de madrugada, quando nos viu desesperados (eu com dores e com o choro dela, o marido com o choro de ambas, coitado), e mal me colocou as mãos no peito, guinchei de dor e lá voltaram as lágrimas. A enfermeira, sem estar à espera, ficou aflita e tentou acalmar-me. Foi só quando ela me ensinou a massajar devidamente o peito, enquanto a Margarida mamava, que o desconforto foi passando. Verificou e confirmou que o leite estava a passar devidamente, por isso não deveria ter mais problemas, era só aguentar aquele bocadinho. Perguntei-lhe se não a podia trazer para casa comigo, para fazer o mesmo nos dias seguintes. Ela riu-se. (Não, a sério, venha lá.)
Quando o dia amanheceu, à luz e à claridade, tudo pareceu mais fácil. Apesar disso, dormi mal (e pouco) e por isso quando vi a minha cara no espelho, ia morrendo de susto. Olheiras até ao chão. Olhos vermelhos. Pele baça. Cabelo desgrenhado. Jesus, será isto a maternidade? Mas o que é certo é que me sentia mil vezes melhor. Já não me custava tanto a levantar da cama, tomei banho sozinha (até consegui pôr os meus cremes!) e já fui capaz de me sentar na beirinha da cama sem ter dores por aí além. Não queria acreditar na diferença que fazia de um dia para o outro, em poucas horas. Afinal a alta de uma cesariana ao terceiro dia tem mesmo razão de ser: em princípio será quando a grande maioria das mulheres já se sente praticamente recuperada. Agora já começava a acreditar nas teorias que desmistificavam a lenda da "cesariana bicho-papão". Eu tive alta ainda de manhã e começámos a arrumar as tralhas para nos irmos embora. Se quando fomos parecia que levávamos bagagem para três semanas de viagem, agora então, com tudo desarrumado e com os presentes que nos tinham oferecido, ainda pior. Infelizmente, a Margarida ainda teve de fazer cinco horas de fototerapia, por estar um pouco amarelinha, e por isso saímos do hospital já passava das seis da tarde - era noite cerrada. Mas fora os abanões que se sentem dentro do carro e o desconforto que provocam (só arranjei a milagrosa cinta pós-parto três dias depois de sair da maternidade), vim sempre bem e logo que cheguei a casa já me sentia capaz de fazer tudo. Claro que não fiz, por precaução, mas percebi que estava no bom caminho. Precisamente uma semana depois, o Dr. Amado tirou-me os pontos (em pouco mais de um minuto) e não custou nada. Só me disse que durante cerca de seis meses poderia eventualmente sentir a zona da costura um pouco dormente, e realmente confere. É estranho, mas por enquanto ainda não tenho muita sensibilidade nessa zona, apesar de sentir que começa a voltar, lentamente.
Hoje, praticamente um mês depois da cesariana, posso dizer que a recuperação não foi nada de especial, fora aquele dia em particular, em que pensei que acabava o mundo. É realmente mais fácil, menos violento e acredito que em certos aspetos melhor do que um parto normal, em que os cortes e os pontos podem ser mais e mais dolorosos do que estes. Não sei, porque nunca tive um parto normal, mas acredito em quem já passou por ambos e me tinha dito isto antes de ter passado eu mesma pela experiência. Fico feliz por ter confiado plenamente no meu médico e agora percebo por que me recomendou esta opção. Sou um caso de sucesso que não contribui para as estatísticas que recomendam o parto normal, mas certamente não serei a única. Só sei que sobrevivi para contar a história, com final feliz!
18 de dezembro de 2013.
05h30
Acordei estremunhada ao som do alarme do telefone. Nem queria acreditar que era o dia em que a Margarida iria nascer. Parecia tudo muito surreal. Não dormi bem, à conta dos nervos, mas quando o despertador tocou senti um misto de adrenalina e ansiedade que me fez saltar da cama como uma mola. Mais ou menos o que sentimos quando temos de nos levantar cedíssimo para apanhar um voo que nos leva a um destino de férias: a excitação supera sempre o cansaço. Preparei-me com calma, tomei duche, vesti-me. Estava em jejum desde as 23h30 da véspera, e por isso só o marido tomou o pequeno almoço. Nem tive direito a água. Fome não tinha, pela hora da madrugada, e também porque os nervos me embrulham sempre o estômago.
Tudo pronto, uma última olhadela à casa, para ver se estava tudo em ordem para três dias depois receber a nossa nova inquilina, e toca a enfiar tudo no carro. A mala dela, a minha, a do papá. A almofada de amamentação (que acabei por não conseguir usar no hospital), a máquina fotográfica, o computador, algumas garrafas de água. O ovinho, o chassis do carro. Parecia que íamos de viagem três semanas. Tentei controlar-me e fingir que não estava a sair de casa para ir parir um bebé, mas por dentro estava eufórica e cheia de medo. A cesariana tinha sido aconselhada pelo médico em quem deposito total confiança há anos, médico esse que iria fazer o parto e, como tal, apesar de a princípio ter ficado um pouco desiludida por não ser parto normal, acabei por me habituar à ideia. Sendo assim, achámos melhor marcar (outra coisa que sempre disse que não queria fazer) para antes do Natal, e foi assim que chegámos à data escolhida. Sabia que era algo mais controlado e menos violento e imprevisível do que todo o processo de um parto normal, mas mesmo assim estava aterrorizada com tudo o que me esperava. Não por ser desconhecido, porque estava completamente por dentro do que se iria passar, mas por detestar todo o ambiente de hospital. Isto iria ser, afinal de contas, uma cirurgia. Só queria que ela viesse bem de saúde, que tudo corresse bem e dentro do esperado, e que eu sofresse o menos possível, já agora.
07h55
Estacionámos à porta do Hospital dos Lusíadas. Entrei apressada, não sei se empurrada pela ansiedade ou se por achar que já poderíamos estar atrasados - o Dr. tinha pedido que estivessemos lá antes das 8h. Feita a inscrição, sou levada poucos minutos depois por uma enfermeira. Entrei no bloco de partos sem me despedir do marido, não fazia ideia de que iria estar algumas horas sem o ver - a ideia era estarmos sempre juntos até à hora H. O problema foi haver falta de quartos disponíveis aquela hora, o que fez com que fosse levada para a sala do recobro ainda antes do parto, e que tivesse de ficar lá, com ele cá fora, na sala de espera. Na sala do recobro, a enfermeira pediu-me que me despisse e que vestisse a bata do hospital - aquelas jeitosas que deixam o rabo ao léu - e me deitasse na cama. Nessa altura já eu estava que nem podia. Fiquei na cama do fundo, a mais longe da porta, e na parede ao lado estava um quadro com uma foto de uma cesariana. Lembro-me que olhei durante horas a fio para a foto (praticamente até entrar para a sala de partos, às 12h15), completamente petrificada com a visão do que se iria passar dentro de alguns instantes. Veio uma enfermeira fazer perguntas de rotina, veio outra para me colocar um cateter no pulso para o soro (que doeu como o raio!), e entretanto achei que devia perguntar pelo marido, que a esta altura do campeonato já devia achar que eu tinha parido e ninguém o tinha avisado. Acabaram por deixar que ele entrasse durante alguns minutos para me ver. Pareceu-me calmíssimo - aparentemente só eu me sentia perdida no meio daquele ambiente. Saiu pouco tempo depois e eu fiquei outra vez sozinha. Tive de pedir para me ajudarem a ir à casa de banho quatro vezes - com o Boby do soro atrás. Combinação de cabeça na bexiga + nervos dá nisso. Acabei por verbalizar a um dos enfermeiros que estava cheia de medo, o que levou a que a senhora da cama ao lado, atrás da cortina, me dissesse que não custava nada. Já ia na segunda e era canja. Falámos um pouco e ela quis tranquilizar-me, uma voz sem rosto, mas nada me conseguia acalmar. Praticamente nem ouvia nada do que me diziam, só pensava constantemente no mesmo. Vieram buscar as senhoras que estavam primeiro na "fila de espera", e eu ia ouvindo os bebés a chorar à medida que elas desapareciam da sala. "Olha, já nasceu", comentavam os enfermeiros. Quando percebi que era eu a próxima caiu-me tudo. "Vamos?", perguntou-me a enfermeira.
12h15
Entrei na sala de partos pelo próprio pé. Observei tudo o que podia para tentar registar algum pormenor marcante, mas só me lembro de pensar "que giro, tem uma janela para o exterior..." Deitei-me na marquesa e posicionei-me de lado conforme as instruções do anestesista. É agora, pensei. A partir daqui é que a coisa se complicou. A experiência da anestesia custou-me mais do que imaginava. É tudo muito estranho e demasiado assustador. O anestesista e a enfermeira que assistiu foram uns queridos, mas isso não impediu que os medos viessem ao de cima. Foram conversando comigo como se nada fosse, para me distrair, fingindo que estavamos sentados à mesa de um café. E eu fingia que ouvia o que me diziam e falava mecanicamente, com respostas tipo telegrama. Agora já não dava para desistir, raios. Senti a picada que anestesia a zona local, e à picada seguinte, mesmo com aviso prévio, tive uma espécie de choque elétrico, da ponta do pé até à cabeça, que me fez estremecer e me assustou imenso. Como se tivesse colocado os dedos na tomada e a corrente tivesse ido de uma ponta do corpo à outra. Senti mais picadas, mas já menos intensas. Os nervos tomaram conta de mim e comecei a hiperventilar. "Minha querida, vai começar a sentir a perna direita dormente", ouvi. Confere. Deixei de sentir a perna direita. A enfermeira deitou-me novamente de costas e a esta altura já teve de ser ela a dobrar-me os joelhos e a apoiar-me os pés na marquesa. "Experimente levantar o rabo." Nada. Já não sentia absolutamente nada da cintura para baixo. Uma sensação terrivelmente estranha. "Vai sentir-se ligeiramente enjoada daqui a dois minutos, é normal e passa depressa", disse o anestesista. Só exagerou no eufemismo, porque ligeiramente enjoada não foi bem a descrição apropriada. Senti um enjoo fortíssimo e pensei mesmo que ia vomitar. Uma má disposição tremenda. Disse-o em voz alta e a enfermeira tranquilizou-me, "já vai passar, minha querida, respire fundo". Inspirei e expirei com dficuldade, à procura de uma calma que não tinha. Sentia que estava a flutuar dentro de água quente, da cintura para baixo - não percebi se estava vestida ou despida, só sabia que me tocavam porque sentia estremecer as pernas. Só pensava que devia ser isto que sentiam as pessoas que ficavam paraplégicas. Que horror. O anestesista pressionou-me várias vezes as coxas com firmeza e confirmou que não sentia nada. Vi colocarem o campo que bloqueia a visão para a barriga, e pedirem para chamar o pai. "O pai certo!", disse o meu querido Dr. Amado, sempre bem disposto. Fixei os olhos no relógio para não perder de vista a hora do nascimento dela. Queria ter a certeza de que era a hora exata. Quando finalmente estava tudo pronto, entrou o marido, vestido a rigor, bata e touca verde na cabeça. Pronto, comecei a chorar. Acho que chorei durante toda a cesariana. Só me lembro de ele me perguntar, "Está a doer?", e eu responder "Não..." E de facto não estava. Só sentia abanões fortes na zona abdominal, mas absolutamente dor nenhuma. Chorei e senti-me completamente perdida nesses minutos em que durou tudo aquilo. Uma sensação indescritivelmente horrivel, não pela dor, mas por todo o "peso" que tem. Sentimo-nos totalmente nas mãos daqueles profissionais que estão naquele momento com a nossa vida e a vida da nossa bebé sob sua responsabilidade, e a falta de controlo da nossa parte é muito assustadora. Só podemos esperar que tudo corra pelo melhor.
12h34
De repente, ouvi "Vem aí a sua Margarida! Olhe, levante a cabeça!" Baixaram o campo mas não consegui ver nada, o marido teve de me ajudar a levantar a cabeça porque me sentia sem forças. Assim que a ergueram e a vi pela primeira vez, chorei ainda mais. Achei-a logo linda de morrer, fiquei perdidamente apaixonada. "3,520kg, às 12h34!" Ouvi alguém dizer " Parabéns, mamã!", mas não consegui responder no meio das lágrimas. "Esta mãe agora não está para ninguém", disse o Dr. Amado. Levaram-na para a marquesa do lado, limparam-na e vestiram-na, tive-a sempre debaixo de olho. Lembro-me de perguntar por que não chorava ela, e se estava tudo bem. "Está tudo bem! Não se preocupe! Estas mães querem é que eles chorem... Minha querida, ela vai chorar durante três anos... e é à noite!", brincou o meu médico. A partir daqui, foi tudo muito rápido. Coseram-me, colocaram-me numa cama e deitaram a menina ao meu lado. Ficámos as duas a namorar na sala de recobro. A minha irmã M. ainda conseguiu ir de fugida à sala, para me dar um beijinho, e depois passei por ela e pelo marido a caminho do quarto. Já eram cerca das 16h. Começava aí a grande aventura da recuperação da cesariana e dos cuidados com a minha bebé. Mas isso fica para outro post...